segunda-feira, 14 de julho de 2014

Terceira Convenção de Genebra ou um relato de sobrevivência

Fade in. Interior de uma livraria moderna, dessas que tem cafeteria e tudo. Uma pequena aglomeração de pessoas aguarda pelo início da sessão de autógrafos. É uma noite temática. Livros escritos ou sobre mártires de diferentes épocas. Biografias de Gandhi, Mandela e Tiradentes aguardam autógrafos. Em um dos stands assino na contra capa do livro sobre minha sobrevivência a tortura durante a última consulta odontológica. É quando acordo suado em minha cama no meio da madrugada. Foi apenas um sonho? Para me certificar passo a língua na gengiva que ainda acusa o golpe.

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Já fazia um tempo que não visitava o dentista. As coisas iam razoavelmente bem então fui postergando. Um discreto desvio em um dente incisivo pode ter seu charme. Ou pelo menos facilitar o reconhecimento após um acidente de avião.  Mas as coisas começaram a mudar quando meus dentes começaram a apresentar muita sensibilidade a alimentos frios e mais consistentes. Depois aos quentes. E, finalmente, a qualquer coisa que colocasse na boca - certa vez acho que até um pouco de saliva fez meu incisivo lateral doer, numa adaptação ao "só dói quando respiro". Resisti bravamente, lidar com a dor nos torna mais tolerantes e estava precisando começar um regime e comer menos mesmo. Até que não teve jeito e a despeito de meus argumentos minha esposa Brígida agendou uma consulta. 

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 Evitava pensar na futura consulta. Tal como fazemos com a morte. Até que o fatídico dia se apresentou. Talvez quase tão ruim quanto o dia da consulta foi a véspera. Ansioso, observava as janelas e traçava rotas de fuga. Cheguei a subornar a secretária do dentista para que ela tirasse fotos do consultório para estudar melhor o adversário. Não deu certo. A noite Brígida disse que iria comigo pela manhã e discretamente guardou as chaves do meu carro e minha carteira em sua bolsa. Não consegui dormir durante a madrugada e pensei em fugir a pé. Quem sabe conseguir uma carona com um caminhoneiro e deixar o país pelo pantanal. Mas ao menor rangido da cama quando fui levantar ela acordou e disse # Vamos começar a nos aprontar!

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O consultório não era amedrontador. Devo confessar que o conhecimento prévio por meio das fotos ajudou no autocontrole. Sei que todas aquelas fotos de gente feliz com dentes brancos e retos além dos quadros de uma bucólica natureza na verdade não passam de um disfarce e... a dentista chama meu nome com um sorriso no rosto dizendo # Bom dia Eric. Vamos começar? - como todo bom torturador do DOPS. Me levantei e entrei no consultório. Ouvi a porta batendo e continuei andando. # Onde você vai? (ia em direção a janela - 5 andares nem é tão alto). É melhor sentar aqui na cadeira. Mas ao sentar não me senti nada melhor. Pelo contrário. Era como se estivesse sentado em uma cadeira elétrica, só esperando ligarem a energia. O babador me sufocava. E a tortura começou com um jato de água areiante nos dentes e o troço de sugar pegando na bochecha. Senti que ia vomitar mas resisti. Achei que estava indo até bem quando ela pegou uma pequena britadeira e começou a demolir minhas gengivas. A cada estocada subia um pouco na cadeira até que em certo momento estava pendurado no encosto da cabeça como um papagaio de pirata. Tentava em vão defender minhas gengivas com a língua que ficou em carne viva. O sugador tinha dificuldade de drenar minha saliva engrossada pelo sangue. Tentava resistir e lutar mas a perda de sangue foi me enfraquecendo e quando ela começou a arranhar meus dentes com aquele ganchinho já não oferecia resistência. Estava entregue ao seu sadismo. 

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Isso agora já é parte do passado. Já houve a anistia e torturados e torturadores convivem na mesma sociedade. Penso no Eduardo Moscóvis para interpretar meu papel no cinema. 

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