sábado, 3 de abril de 2010

Sobre amadores e coelhos

     Hélio tinha um problema: suas filhas, Clara de sete anos, e Isabela de cinco, andavam muito tristes após a morte da mãe há um ano. Terminado o enterro, sem conseguir lidar com a reação das crianças, viajaram por dois meses para a cidade natal de Hélio, na tentativa de buscar apoio de sua família. Ao voltarem para casa, as meninas ainda estavam abaladas e ele tentou de tudo o que conseguiu pensar – passou a trabalhar em meio horário, pintou a casa com desenhos nas paredes, comprou diversos brinquedos, aula de natação, clube novo, contratou Conceição, uma empregada com excelentes dotes culinários, mas o resultado foi pequeno, quase nulo.
     Aproximando-se da época da páscoa uma nova idéia surgiu. Comprar dois coelhos e deixá-los junto aos ovos de páscoa, simulando “coelhinhos da páscoa”. Foi até uma loja de animais e escolheu dois que pareciam mais saudáveis.
     - É um casal? – perguntou ao vendedor, que levantou os animais acima do rosto com uma destreza de quem define o sexo de coelhos há anos.
     - São duas fêmeas.
     No dia D, a felicidade das filhas causou até vertigens em Hélio. Elas passaram o dia cantando músicas de páscoa e carregando os coelhos de um lado para o outro. Não mencionaram a mãe nem quando o pai as cobriu a noite. Satisfeito, Hélio dormiu como não dormia desde a doença da esposa.
     O tempo passou e suas filhas agora aproveitavam mais as mudanças instituídas pelo pai. Estavam sempre no clube aos finais de semana, definiam menus para o almoço e pediram para desenhar elas mesmas em uma parede do quarto dos fundos. Hélio estava mais tranqüilo agora. E tranqüilo dormia quando foi surpreendido por Isabela gritando:
     - Papai, papai! O coelhinho da páscoa ta com dor de barriga!
     Ele se levantou e foi colocar em prática seu antigo sonho, a veterinária. Quando chegou até o cercado dos coelhos seu sonho se transformou em pesadelo. Três filhotes já haviam nascido e pelo diâmetro da barriga da coelha, ainda viriam muitos. Pensamentos um tanto sádicos envolvendo certo vendedor invadiram sua mente, mas ele agora tinha outras preocupações. Como se desfazer dos novos integrantes da família sem magoar as filhas.
     Reuniu as crianças depois de findo o trabalho de parto, agora proprietário de doze coelhos, e disse:
     - Os coelhinhos da páscoa têm filhotinhos. Eles vão crescer e um dia vão ir embora entregar ovos de páscoa para outras crianças.
     A reação foi boa, e ele tratou de tentar doar os filhotes. Tarefa ingrata. Se fossem filhotes de Gremlins talvez fosse mais fácil. Como última (e desesperada) medida, recorreu ao vendedor:
     - As duas fêmeas tiveram filhotes, e eu não tenho o que fazer com eles. Você podia ficar com eles aqui para vender – disse, mastigando o fígado e o engolindo de raiva, para conseguir sorrir.
     - Infelizmente não posso, meus animais vem sempre de criadouros selecionados – e devolveu o sorriso.
     - Mas o que eu vou fazer com os coelhos?
     - Venda para um açougue. Carne de coelho é uma delícia.
     Hélio voltou a ter problemas para dormir. Não queria enganar suas filhas dessa maneira tão cruel. Enquanto se decidia a segunda geração de coelhinhos da páscoa crescia. E antes que se desse conta a terceira geração batia à porta. Agora com cerca de sessenta coelhos a sugestão do vendedor não parecia tão nazista quanto quando a escutou. Procurou um açougue e fechou negócio. Ao nascimento da quarta geração iniciou um negócio lucrativo. Outros açougues o procuraram e ele fechou seu escritório para dar conta da demanda. E o sono voltou.
     O tempo passou e no próximo setembro Hélio foi interrogado por Clara:
     - Pai, se a páscoa é no início do ano, por que os coelhos têm que ir entregar os ovos agora?
     - Porque, eh, tem alguns coelhos que vão para lugares longe daqui, e para chegar na páscoa tem que sair agora – respondeu banhado em suor.
     Sua resposta pareceu satisfazer sua filha e ele passou a ter mais cuidado com o que dizia para evitar futuros questionamentos.
     Com a chegada da crise, os açougues reduziram seus pedidos, o dinheiro começou a minguar, e a produção ficou entalada em seu quintal. Foi quando teve a idéia de usar os coelhos como fonte de carne para casa, aproveitando o recurso que tinha para economizar. Era uma idéia ousada. Se as meninas desconfiassem do gosto e perguntassem sobre a procedência da carne, ele seria capaz de mentir? Foi.
     - Um coelhinho da páscoa não agüentou o peso dos ovos de páscoa e morreu – já com a calma de um profissional.
     - Tudo bem papai, a gente come coelhinho cansado todo dia que a Conceição faz – disse Clara, mostrando a seu pai que ele ainda era um reles amador.
(Postado originalmente em 31/03/2010)

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